A nossa lona
























Foto: © Cesarr Terrio

Somos dois estranhos, moça. Pensei que mais nunca eu teria o que escrever. A mão definhou junto ao pensamento, às histórias, à fantasia, a vida. Não escrevi durante muito tempo porque a verdade é que eu não sentia aqui dentro. N-A-D-A, generosamente sonoro.

Sem saber, cheguei a pensar que esta normalidade interna era pelo simples fato de estar vivo. Eu estou morto. E frio. Vazio.

Uns dizem que sou intimista, outros, que sou expressivo. Prefiro franco, embora esta palavra tenha me trazido má sorte das vezes que a repeti. Aqui e ali eu consigo esboçar cenários, fazendo a caneta escorrer na vontade de construir enredos que se iniciem com o clima, com a vida, ou mesmo meu quarto, tudo sempre como sujeito para início dos monólogos que tão bem me denunciam. Entre todos estes verbos, estas orações, estas preces, pouca coisa faz sentido. Tudo sempre muito falho. Tudo muito imperativo, tudo muito forçoso. Às vezes, mas deveria ser sempre, é necessário abrandar a fala. Dar o espaço de escutar as vozes que nos velam em silêncio, o que não sabemos, mas deveríamos saber.

Fazem 6 dias que sou abençoado com esta madrugada que amanhece prata-chumbo-bronzeada, afastando-me das ruas em que só encontro solidão. Nenhuma ligação. Se eu tivesse de enxergar, eu não via: delirava, com nós dois aqui e ali folheando histórias futuras que jamais acontecerão para nós. Moça, eu te gosto. Mas eu nunca disse que te amava, porque, ao fim e ao cabo eu já gastei tanto amor nessa vida que eu saberia, aqui dentro, se fosse isto o que meu coração reservara. Eu tentei, juro que tentei, invoquei todos os carrosséis desta cidade para desfilar nas ruas enlameadas por onde passamos. Eu queria que tivesse sido lindo, que tecidos coloridos ornamentassem as janelas e as calçadas e os sonhos. A vida por um momento poderia ter se transformado em circo, aquelas mágicas que, mesmo com descuidos do ilusionista e da assistente, dão certo. E pombos voariam de nossas cartolas em sinal de aplausos do público e cortinas rubras fechando-se após o esplendoroso espetáculo da sorte.

É este o meu dom, moça, fazer com que as pessoas acompanhem minhas narrativas. Mesmo que não saibam como chegaram até aqui, com que frase introduzi a isto tudo e muito menos sabendo onde quero concluir. O grande número, o grande ato, o mestre de cerimônias em meio ao tablado anuncia veementemente a todos os senhores, senhoras, e público pagão presente: após o intervalo o show continua em sua melhor parte. Semanticamente será mais um de nossos hiatos. Talvez um mais longo...

Todas as vezes que uso reticências é porque nada foi interrompido. Minhas reticências são a real finalização. Elas existem para sentenciar mesmo que eu não escreva as palavras. No momento em que ficamos reticentes, meu bem, reticenciamos. São três pontos. Um fim absoluto, um fim sem saída. Eu não... Você não... Não quero mais isso para minha vida. Acho que esta pontuação não só define as minhas construções, ela também me define. Define a continuação ou finalização ou reestruturação ou desarticulação de meus pensamentos. Coordenada ou subordinadamente. É tudo uma questão de como se coloca as coisas, de como se apresenta a ordem das coisas: desta vez eu venho primeiro, desculpe. 

Vivo falando de coisas, eu sei, eu sei. Repito como isso pudesse mudar alguma coisa. É meu mantra. Ao fundo, acompanha-me o som fúnebre da banda circense, enquanto estes elefantes magros e moribundos circulam meu picadeiro. Sentadas pelas arquibancadas, crianças travessas atiram pipoca. E um clima nostálgico enfeita a lona do teto. Ninguém me entende, mas eu sou feito de tudo isto, de todas essas coisas. Destes pedacinhos medíocres e amaldiçoados do amontoado humano de histórias. Talvez, no fundo, no fundo, eu não as seja, mas me fiz delas. O que, em outros, me torna i-le-gí-vel.

Que ninguém procure me entender. - é o logo que tremeluz nas bandeirolas. Perdoe-me ter te dado a missão que por anos eu venho fracassando. Não sou para ser catalogado, não sou para ser domesticado, eu não sei se posso amar de novo e, pior do que isso, ser amado. Não sou um homem de carne e osso, moça. Sou um amontoado. Um amontoado de coisas, de histórias. Uma criatura pitoresca e circense, acostumada com as correntes de fogo e as cordas-bambas desta cidade enlameada. E quando eu tento escrever, a mão falha. Faltam-me as palavras, o fôlego, então e então não sobra nada. NA-DA. Vazio.

Eu não existirei em dicionários. Criatura egoísta de pleonasmos. Criança melindrosa de circo. Que este céu chumbo nos abençoe. Você para sua sorte, eu para o meu destino: cada qual no seu caminho. A vida, sentada no banco da bilheteria, assiste a nossa conversa com as mãos no queixo e aquele olhar de sorriso. E diz-nos numa voz ensaiada: “Aqui! Espero que tenham gostado! As maçãs são cortesia da casa.”.



3 comentários:

Rafaelle Melo. disse...

Tremulei entre suas linhas. De fato vc me conduziu nesta densa narrativa. Cheguei a sentir-me invasora, tão aberta tua alma estava pra minha sempre presente curiosidade meticulosa.

Só quem é capaz de profundidades como as suas será capaz de reencontrar o que a dureza da vida insiste em tirar.
Te deixo um abraço esperando que ele preencha teu peito de esperanças.

Rafaelle Benevides disse...

Cris, continua a escrever.

Cristiano Guerra disse...

Querida Rafaelle,

Hoje voltei a esse lugar como quem se mudou faz muito, mas num dia qualquer passa na porta da antiga casa. Esteve tudo fechado por muito tempo. Mas eu sabia como entrar. Conheço cada janela. Cada fresta. Essa sua pequena mensagem foi como uma carta na caixinha de correspondência. Eu pensei que só ia encontrar contas, tos, folhas secas da árvore ao lado. Seu recado foi um punhado de esperanças. Eu volto, um dia em volto. Só preciso do tempo de fazer as malas.

Meu abraço mais apertado. Muito obrigado!