Foto: © Cesarr Terrio
Esfumaçado.
Nas horas que encerram essa tarde, vagarosamente morrem as últimas arestas de
sol que se prestam pelas fendas horizontais da janela. O quarto veste-se
translucidamente, serpenteando pelo piso o fúnebre frio que antecede a
escuridão. Sinto que algo me anuncia tristeza. Debruçado na cama, levei a mão
ao peito, e o peito palpitava. Forte. Algo me inquieta. Algo insiste em me
fazer perceber: onde havia pouca luz agora se faz opaco. A partida.
Algumas
pessoas convencem-nos, outras não. Algumas pessoas convêm, outras não. E é
sempre tudo muito imediato. Os olhos têm um jeito mágico de compreensão. É
pelos olhos que sabemos as amizades, os amores e os inimigos, mesmo que todo o
corpo empenhe-se em dizer o contrário. Os olhos sempre sabem. Os olhos sempre
sabem o que veem.
Foi em alguma
outro desses fins de tarde que eu te conheci. Sou grato, muito grato.
Conhecemos pessoas não para nos fazer companhia, mas para mudar de algum jeito
a nossa percepção de vida. Para conhecermos de verdade temos é de perceber o
outro. E essa é a primeira coisa que muda: acrescentar o outro em nossas vidas.
Tudo que floresce se dá com o respeito. Dá-se com paciência. Dá-se com a
curiosidade de conhecer o que há ali.
Conhecemos e então aprendemos; aprendendo, mudamos. O outro, ou os
outros, ou nós mesmos, somos necessários.
Guardo os bons
momentos no bolso, não no peito. O coração é muito grande e, vez ou outra,
findamos perdendo, ou o pior, esquecendo, das coisas que guardamos. O bolso,
não, não. Ali estão mais perto. É pequeno do tamanho de caber somente uma mão,
o mais importante. Levo meus amigos no bolso, para uma vida inteira.
Prometi-me não
passar do quinto parágrafo, mas é impossível. Por mais que eu seja sintético e
queira fazer disso aqui uma pequena lembrança, não se resume amizade em poucas
linhas. Todos os livros que falam dos amigos falharam. Imagine só os dicionários
que também tentaram? Das coisas que realmente fazem falta, são os amizades. Não
se vive de livros e dicionários, mas se vive de amigos.
É claro que eu
vou sentir saudade. É claro que chorarei algumas das vezes que eu olhar as
fotos de nossas viagens, ou as fotos das horas que passamos juntos, ou ler os
cartões postais que me enviar. Algumas coisas simplesmente nos lembram dos amigos,
e lembrar é o primeiro pressuposto da saudade: o que nos falta para sermos
felizes.
A verdade é
que você sabe que aqui dentro eu sou um grande chorão. Se algum dia voltares a
ler essa carta saiba que estou te abraçando muito apertado, em nome das coisas
que você me ensinou na vida.
Preciso-te
dizer que aprendi o desapego com você, um grande gesto de coragem. Tudo que
precisamos é de grandes momentos e de coisas poucas. De grande vontade e de
poucos mimos. De grande desejo e poucos empecilhos. De grandes asas e de poucas
tempestades. Porque viver é feito, literalmente, do que vivemos. Eu costumava a
esquecer. Ainda costumo esquecer. É preciso o passo para se fazer o caminho.
Você é um exemplo de coragem, de coragem de viver.
E, quem sabe, de ganhar o mundo.
É verdade,
estou chorando. Não porque me despeço, mas porque você parte. Há um problema
muito grave com as partidas: não se há certeza de voltas. Espero que um dia
volte ou que um dia eu vá. Não perca contato comigo. Você bem sabe como sou
chato e carente com meus amigos. A verdade é que é isso que me mantem
respirando: amigos como você. E tantos outros que eu sei que são meus amigos.
Sabes como eu sei? Ao reencontrá-los a vida não passou. Ela esperou o exato
momento do reencontro para que as coisas continuassem como sempre foram. A vida
em tempo parado. Os reencontros que nunca deixaram de ser intervalos entre uma
risada e outra. Meus amigos me fazem rir. Meus amigos sempre foram assim.
Sinto que já é
hora de eu também me despedir. Só posso te desejar uma boa vida, cheia de
lugares, pessoas e eventualidades incríveis. Como aquele dia que nos conhecemos
e mudou minha vida. Fins de tarde milagrosos. Que o nosso Deus que você não
acredita abençoe. Que nunca lhe falte preces nem esperanças. E que você seja
muito, muito, feliz. Qualquer caminho que sejas.
Penso que demorei
o tempo de uma vida para escrever isso aqui, mas ter conhecido você justifica
uma vida inteira. De translucida, o resto de luz que ainda chega mantêm-se
opaca. Mas sabe a poeira que atravessa os raios de sol na penumbra? O menor dos
floco demora uma infinidade para um travessia que, na verdade, não dura mais do
que um instante. Parece suspenso, parado, milagrosamente situado dentro da luz.
Eu sou um pequeno floco, Eliette: por um curto espaço de tempo, a vida
iluminada pela tua luz.
Te amo, minha
boa amiga.
# Para Eliette Martin: que ilumina.
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