Foto: © Cesarr Terrio
O sereno tem esse mau costume, preenche todos os
espaços, todas as coisas. Fosse algo que eu pudesse competir, acenderia as
estrelas desta noite e estenderia pelo céu uma imensa nuvem de fogo. As pessoas
precisam sentir, no fundo de seus corações, que algo esquentam-nas. Que não seja
falta de amor próprio, que não seja falta do próprio amor, que não seja falta
de fé; é preciso que algo as aqueça além de seus cobertores nestas noites em que a
chuva resolve varrer a cidade. Mas nem estrelas e nem céu, olhei para cima
e uma imensidão de azul negro cobria a todos nós, que estamos acordados pelos
cômodos de nossas casas, nos cômodos de outros lugares, nas valetas das ruas,
ou aos inocentes que dormem na inocência que é dormir. Enquanto uns dormem, o mundo acontece numa sutileza que não descança. Para todos nós, indiferentemente, esse
frio assola a alma, estejamos abraçados ou não. Se bem soubéssemos, o escuro não
faria tanto medo. O medo é implacável. Deveríamos ter medo da solidão, do frio, e da solidão que faz
frio. Enquanto a noite padece sob os pés das camas e padece nos assoalhos das baladas,
me preocupo em sorrir para um sol que sei que vai demorar a vir. E não me
importa quanto tempo, quantas doses dessa vodca, quantas cantoras haverão de derramar
miséria nas músicas que ouço; um sol mais forte e impávido encobrirá a todos, haverá de exaurir
cada tristeza, algum dia. Talvez não, não nesse momento de lamurio em que invariavelmente construo uma profecia com os olhos ainda abertos, mas muitas
pessoas me associam a uma fragilidade quase inaceitável pelo sorriso torto que
esboço com a maior facilidade. Não sei o que arranjam contra os sorrisos tolos, não fazem mal. E então, deixemos que os tolos falem o que quiser, pois, enquanto me condenam, se fortalece em
mim a certeza de como e quanto conseguem ser todos idiotas. Julgar, apesar de
que não pareça, é uma decisão de ida e de volta. Alicerçar veredictos sobre os
outros estabelece uma condição imutável do modo como entendemos as coisas: o
bitolamento haverá de ser o princípio da clareza, e então, existirá o momento em que serão, somente, escuridão. Frio, frio como o frio que boicota esperanças, vou me
abstendo de quase tudo e de quase todas as pessoas. Algumas poucas se mantêm no panteão dos que importam. Não é só por olhar por mim,
em verdade é minha escolha de só olhar para os outros quando eu tiver alguma gentileza nos olhos.
E mesmo que eu não cumpra minha promessa, ao menos eu tente. Falhadas todas as
opções sempre e sempre haverá a opção de ainda tentar. Que nos falte qualquer
coisa, menos a vontade de espantar para longe esse frio, que acendamos velas,
que acendamos sonhos, qualquer coisa que seja paliativa na nossa espera de que
esse sol venha a raiar com todos os males das noites de sereno. Se desistirmos,
porque ainda sim podemos escolher desistir, primeiro, morre em nós esse fogo e, depois, morremos nós
mesmos em nós. Que tudo que for fagulha, cresça, incendeie; tudo que abrasa é a melhor forma do
amor acontecer; que tudo que não seja se desmanche entre tristezas. Agora eu posso provar o seguinte: que as pessoas se dividem entre as de coração gélido e as de coração iluminado. O
brilho é a certeza de todos os perseverantes. Olhemos para o céu na mesma certeza de
que, embora não estejamos podendo ver, há uma imensidão cravejada de todo tipo de coisas que resplandecem; e, se olharmos bem, entenderemos: não
muito maior do que guardamos no peito.
# Para Rafa Gambardella, uma centelha muito maior que qualquer madrugada.
Um comentário:
Sempre comovente.
Postar um comentário