Gentileza


















Foto: © Cesarr Terrio



Não havia amor naquela noite. Por vezes sinto-me assim, incrivelmente, esquecido. Enquanto o mundo acontecia e eu não fazia parte, restou-me duas long necks e um cigarro que nunca pousou na minha boca. Fazia frio, e o frio que fazia sufocou qualquer esperança que houvesse nessa varanda. Num banco alto, o banco era alto, por um instante levantei um dos braços empenhado-me na captura de uma estrela; eu entendo, mas é que por aqueles brevíssimo espaço de tempo achei que possível fosse se eu acreditasse. Acreditar, nem sempre, é a escolha mais sensata que fazemos. Mas não importa, acreditamos em muitas coisas assim mesmo. E acreditaremos, você bem sabe, até certificarmo-nos plenamente de que fora inalcançável.

Escorri a mão no reflexo daquele mármore negro vendo se, com esforço e com alguma sorte, você pensaria em mim, quem sabe, fazendo qualquer coisa. Não, não. Não pensaria. Somos orgulhosos demais para aceitar esse tipo de coisa. Em todo o céu, uma estrela se quer demonstrou-me um pouco que fosse de solidariedade. Todas egoístas! Condenadas para sempre na solidão do firmamento. Sozinho, também, estava eu naquela noite, admito. Nunca utilizo de reticências, mas elas pareceram me conduzir ao infinito de pensamentos suspensos. No primeiro você me abraçava, no segundo minha barba arranhava o teu pescoço, moça, e todos os outros seguiram na ciranda interminável dos que padecem desconsolados. Ficamos reticenciados no exato momento em que nunca houve um fim.

Não devemos começar o que não podemos terminar. É verdade, confessei num breve tom de solenidade algo que jamais havia dito para mim mesmo. Não ter resposta também é um fim. Enquanto amargava em minha boca, levantei vagarosamente, porque aquele frio, aquele frio agora instalara-se na alma. Descalço, senti nos próprios pés a vida converter-se numa tristeza maior. Maior que toda fé que eu tivesse naquele momento, maior que toda canção que eu escolhesse, maior que qualquer gole daquela cerveja. Maior, porque é muito raro que a gente compreenda: mas metade da gente é inteiramente  tristeza. Que se faz de medo do fracasso, que se faz de terror do que não nos pertence, que se faz de trava para os nossos sonhos. Não tentar é uma derrota tão grande quanto as vezes em que somos derrotados. Perdemos.

A outra metade é o que a gente esquece. Porque esquecer é uma dádiva, é uma honra, é uma gentileza que nos priva de tudo que deveríamos aguentar.  Esquecer é a benevolência da vida, que sopra dos confins do que somos o peso de sermos nós mesmos. Quando não estamos esquecendo de nós, estamos esquecendo os outros. Esquecer é o outro lado do tristeza: o lado em que apenas esquecemos. Você vai se desmanchar pouco a pouco, como qualquer pensamento, como qualquer pergunta que não tem resposta, e breve, não teremos sido nós, mas a certeza de ter sido apenas cada um de nós e a incerteza de ter sido outra coisa. Porque te esquecer é o fim que nunca haveremos de terminar, e até isso esqueceremos, meu bem. Não me culpe de falta de humanidade!, mas você levou tudo. O vencedor leva tudo. E ainda que se vanglorie da vitória, que conte a todos! Eles esquecerão. Não lembrar de nada será a lembrança que terás de mim. Nas suas mãos restará aquele vazio, o vazio do irremediável. O vazio que nunca foi coisa alguma, mas que sabemos, poderia ter sido qualquer coisa.

Um comentário:

lídia martins disse...

Deixo voar os pontos finais cedendo lugar às reticências... Nunca me dei bem com definitividades. A maneira como suportamos o vazio, é o que determina se merecemos que ele se encha.